Salvador prepara projeto que institui cotas raciais


 

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Carlinhos Brown estava lá, na praia do Rio Vermelho. Não deu declarações, nem precisava, já que aparece nas fotos aplaudindo. Com sua presença, o músico baiano chancelou o anúncio do prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), de que a capital baiana terá cotas raciais para os servidores municipais. Divulgado pelo novo prefeito nove dias após a posse, o tema foi o principal embate da campanha eleitoral.

De um lado, o então candidato Nelson Pelegrino (PT) acusava Antonio Carlos Magalhães Neto de ser contrário às cotas, utilizando como argumento a ação ajuizada em 2009 no Supremo Tribunal Federal por seu partido, o Democratas, que exigia o fim da reserva de vagas em universidades públicas por critérios raciais e sociais. Por unanimidade, o tribunal rejeitou o pedido em abril do ano passado.

Em uma das cenas da campanha de TV do petista um eleitor dizia: "Ser contra as cotas é ser contra a cidade". Ao rebater, ACM acusou o adversário de mentir. "Essa é a maior de todas as injustiças da campanha eleitoral. Sempre me manifestei a favor das cotas", disse. Na campanha, ACM Neto trazia sempre a seu lado a candidata a vice-prefeita negra Celia Sacramento (PV).

Por decreto, o prefeito ACM Neto - que herdou a sigla do avô, influente político baiano morto em 2007 - instituiu uma comissão de secretários incumbida de elaborar o projeto para implantação do programa de cotas na capital baiana. Não foi divulgada data para o início do sistema e nem a proporcionalidade entre negros e vagas entre os servidores da prefeitura.

"É comum ouvir que Salvador é a cidade mais negra fora da África, mas não é comum nós cultuarmos e enaltecermos a luta e a riqueza cultural dos nossos ancestrais. O objetivo deste trabalho em conjunto é abrir portas e quebrar paradigmas. O primeiro deles é a criação de cotas para ocupação de funções públicas em Salvador", disse ACM Neto no anúncio. Depois, não quis mais se manifestar sobre o assunto, alegando que já tinha dito tudo que precisava.

Pelegrino, que retomou o mandato de deputado federal, não se surpreendeu com a iniciativa do ex-adversário, três vezes deputado. Lembra que o município já tem lei que prevê as cotas e que ACM só fez implantá-la. "Como o Democratas recorreu ao STF contra as cotas, essa é então uma tentativa de se recompor com este eleitorado", disse Pelegrino. Para ele, a prefeitura está com dificuldades financeiras e a implantação das cotas é uma medida que traz impacto positivo.

A lei é de autoria do vereador petista Gilmar Santiago, aprovada pela Câmara e sancionada pelo então prefeito de Salvador, João Henrique Carneiro (PP) em 2011. Determina reserva de 30% para negros em concursos para a administração pública do município. "ACM estará sintonizado com um desejo que vem sendo reclamado há muito tempo e tem como principal protagonista o movimento negro, que em 40 anos desconstruiu o mito da democracia racial brasileira apontando a desigualdade", afirmou Santiago. O vereador prefere esperar para ver a lei entrar em vigor. "A cidade é de maioria negra, mas os negros ocupam os piores postos de trabalho e estão ausentes do espaço de poder. É essa realidade que impõe ações desta natureza".

Presidente do DEM, o senador Agripino Maia (RN) fez uma autocrítica ao admitir que o partido errou ao pretender derrubar as cotas raciais nas universidades. "Foi um equívoco. Uma posição tomada sem consulta à executiva. Foi uma decisão monocrática", afirmou, referindo-se a Demóstenes Torres, agora responsabilizado pela decisão, que desligou-se da legenda e teve o mandato de senador por Goiás cassado por denúncias de corrupção.

Quanto à decisão de ACM Neto, Agripino afirma que o prefeito está cumprindo compromisso de campanha. "Sua vice é "escura". Ele está desfazendo a acusação de que era contra as cotas."

A população de Salvador, terceira cidade mais populosa do país, é formada majoritariamente por afrodescendentes. Pelos dados do último senso do IBGE, 743.718 se declaram negros e 1.382.543 são pardos. Somados, os números constituem 80% da população de 2,67 milhões de habitantes. Proporção muito acima do total dos brasileiros, em que 50,5% são negros e pardos.

Outras cidades aderiram a essa política de inclusão, como Vitória (ES), Campinas (SP), Piracicaba (SP), Criciúma (SC), Betim (MG), Viamão (RS), além dos Estados do Rio, de Mato Grosso do Sul e do Rio Grande do Sul. "Existe uma tendência nesta direção", acredita a ministra da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Luiza Bairros, admitindo que ainda são poucas as cidades. Quanto às cotas para o servidor federal, a pasta informa que está em estudo.

A ministra relatou que, no caso de Salvador, já há maioria negra no quadro geral de funcionários da administração e que o desafio é como potencializar esta tendência nos cargos de direção, mais valorizados e com carreiras mais bem remuneradas, como procuradores e auditores.

Luiza, gaúcha que adotou Salvador como residência desde os anos 70, acredita que a decisão de ACM deveria influenciar o Democratas no sentido da retirada de outra ação no STF desta vez contrária à medida que regulamenta as áreas de quilombolas. A ação questiona o decreto federal de 2003 que faz o reconhecimento e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos.

A súbita mudança de posição do DEM, significa, segundo o professor de Direito da UnB, Evandro Piza Duarte, um ato de sobrevivência. "O que está acontecendo agora com o DEM é que algumas demandas sociais não têm retorno. Se opor hoje às cotas raciais é enterro político."

Para Edson França, presidente União de Negros pela Igualdade (Unegro), atuante desde 1988, "ACM tem o mérito de ter avançado mas isso acontece provocado por um processo político concreto, pela desigualdade provocada pelo racismo. É uma tentativa de manter o que já tem."

O sistema de cotas raciais e sociais surgiu no Brasil nas universidades públicas no início da década de 2000. Foram pioneiras as universidades estaduais do Rio e da Bahia, seguidas pelas do Mato Grosso do Sul e UnB. Lei federal de 2012 garante a reserva de 50% das vagas nas universidades públicas federais ao sistema de cotas no prazo de quatro anos. Quase 200 instituições públicas de ensino superior já dispunham de alguma iniciativa neste sentido antes da lei, segundo a Educafro, rede de cursos pré-vestibulares voltada à inclusão racial.




Autor(es): Por Carmen Munari | De São Paulo
Valor Econômico - 25/01/2013

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