Questões de Português para Concurso da CPTM

Q27282 - texto associado

Palavra Final: 'Saiam da rua, meninos, voltem pra casa!'

O prazo final de toda brincadeira com meus amigos era o grito da Dona Ruth na janela: “Sai da rua, guri, vem pra casa!”. Sinto saudades da imagem dela com o corpo suspenso na janela do andar de cima do sobrado da rua Saldanha Marinho, em Porto Alegre, tentando nos alcançar com os olhos e a voz. Eu e meu irmão acelerávamos o pedal da bicicleta, recolhíamos o skate ou encerrávamos o bate-bola, sem direito a acréscimos, assim que o grito chegava aos nossos ouvidos. Era uma ordem sem direito a negociação. Sinto saudades não só dela, mas do fato de lá fora não haver mais crianças brincando. Com a calçada sem espaço e a rua sem segurança, os pais se sentem mais tranquilos tendo os filhos confinados nos apartamentos e condomínios, e em vê-los dentro de casa mesmo que diante do computador por longas horas. Curiosamente, em vez de serem levados à apatia, na frente dessas máquinas, expandiram suas relações, interagiram com comunidades diversas, trocaram informação e formaram novos pensamentos. De lá, enviaram alertas, traduzidos em petições digitais, não foram ouvidos e decidiram falar em público e em coro. Sim, são nossos filhos que estavam trancados em casa e, agora, voltaram às ruas, não mais para brincar. Foram para gritar, em um cenário que expôs a nossa dificuldade em traduzir o movimento em rede, este emaranhado produzido na internet, mas que só existe nas pessoas. Nos apressamos em culpar a oposição, que pode ser qualquer um que esteja do outro lado, demonstrando a falta de habilidade para conversar com essa turma, coisa que percebo há anos, em especial quando a autoridade pública é desafiada.

Lembro da reação de um prefeito diante de crianças convidadas a entrevistá-lo em programa de rádio. Estavam todas ansiosas, pois tendo de 10 a 16 anos fariam o que seus pais talvez jamais conseguissem na vida: questionar o prefeito, reclamar das calçadas, falar da escola e oferecer ideias, transformando-se em protagonistas na cidade em que moram. Ante a excitação dos pequenos entrevistadores, o político cochichou à assessora de imprensa: “Essa turma está encomendada”. Para ele, aquele pessoal só podia ter sido preparado, sei lá bem por quem, para fazer perguntas que lhe criassem constrangimento. Eram muito pequenos para terem interesses próprios. Fiquei imaginando que risco correria a autoridade diante de jovens que tinham a expor apenas suas dúvidas, embalados por sua inocência e angústia. E, pensando bem, qual seria o mal se eles tivessem mesmo vindos de ambientes politizados, de famílias que conversam na mesa do jantar sobre problemas do nosso cotidiano ou estivessem em escolas nas quais a política fosse além do velho OSPB que o regime militar me obrigou a estudar. Seria uma dádiva, penso.

Em outra ocasião, políticos também acusaram motivação política ao verem a juventude ocupando São Paulo, como se exercitá-la fosse direito privado dos partidos. Como a maioria de nós, surpreenderam-se com o liquidificador de críticas e ideias que se transformou essa rede. Procuraram a cúpula com quem estão acostumados a negociar e trocar favores e depararam com a imensa base construída pelas pessoas. Se pudessem, dependurados na janela do alto de seus palácios, gritariam: “Saiam da rua, meninos, venham pra casa!”. Não podem mais. Deixaram de ser o pai de todos e lá fora não há mais crianças, há cidadãos.

Milton Jung

Coluna Palavra Final, publicada na Revista Época São Paulo, edição de julho/2013 (texto com adaptações)

Q27281 - texto associado

Palavra Final: 'Saiam da rua, meninos, voltem pra casa!'

O prazo final de toda brincadeira com meus amigos era o grito da Dona Ruth na janela: “Sai da rua, guri, vem pra casa!”. Sinto saudades da imagem dela com o corpo suspenso na janela do andar de cima do sobrado da rua Saldanha Marinho, em Porto Alegre, tentando nos alcançar com os olhos e a voz. Eu e meu irmão acelerávamos o pedal da bicicleta, recolhíamos o skate ou encerrávamos o bate-bola, sem direito a acréscimos, assim que o grito chegava aos nossos ouvidos. Era uma ordem sem direito a negociação. Sinto saudades não só dela, mas do fato de lá fora não haver mais crianças brincando. Com a calçada sem espaço e a rua sem segurança, os pais se sentem mais tranquilos tendo os filhos confinados nos apartamentos e condomínios, e em vê-los dentro de casa mesmo que diante do computador por longas horas. Curiosamente, em vez de serem levados à apatia, na frente dessas máquinas, expandiram suas relações, interagiram com comunidades diversas, trocaram informação e formaram novos pensamentos. De lá, enviaram alertas, traduzidos em petições digitais, não foram ouvidos e decidiram falar em público e em coro. Sim, são nossos filhos que estavam trancados em casa e, agora, voltaram às ruas, não mais para brincar. Foram para gritar, em um cenário que expôs a nossa dificuldade em traduzir o movimento em rede, este emaranhado produzido na internet, mas que só existe nas pessoas. Nos apressamos em culpar a oposição, que pode ser qualquer um que esteja do outro lado, demonstrando a falta de habilidade para conversar com essa turma, coisa que percebo há anos, em especial quando a autoridade pública é desafiada.

Lembro da reação de um prefeito diante de crianças convidadas a entrevistá-lo em programa de rádio. Estavam todas ansiosas, pois tendo de 10 a 16 anos fariam o que seus pais talvez jamais conseguissem na vida: questionar o prefeito, reclamar das calçadas, falar da escola e oferecer ideias, transformando-se em protagonistas na cidade em que moram. Ante a excitação dos pequenos entrevistadores, o político cochichou à assessora de imprensa: “Essa turma está encomendada”. Para ele, aquele pessoal só podia ter sido preparado, sei lá bem por quem, para fazer perguntas que lhe criassem constrangimento. Eram muito pequenos para terem interesses próprios. Fiquei imaginando que risco correria a autoridade diante de jovens que tinham a expor apenas suas dúvidas, embalados por sua inocência e angústia. E, pensando bem, qual seria o mal se eles tivessem mesmo vindos de ambientes politizados, de famílias que conversam na mesa do jantar sobre problemas do nosso cotidiano ou estivessem em escolas nas quais a política fosse além do velho OSPB que o regime militar me obrigou a estudar. Seria uma dádiva, penso.

Em outra ocasião, políticos também acusaram motivação política ao verem a juventude ocupando São Paulo, como se exercitá-la fosse direito privado dos partidos. Como a maioria de nós, surpreenderam-se com o liquidificador de críticas e ideias que se transformou essa rede. Procuraram a cúpula com quem estão acostumados a negociar e trocar favores e depararam com a imensa base construída pelas pessoas. Se pudessem, dependurados na janela do alto de seus palácios, gritariam: “Saiam da rua, meninos, venham pra casa!”. Não podem mais. Deixaram de ser o pai de todos e lá fora não há mais crianças, há cidadãos.

Milton Jung

Coluna Palavra Final, publicada na Revista Época São Paulo, edição de julho/2013 (texto com adaptações)



 

Q27280 - texto associado

Palavra Final: 'Saiam da rua, meninos, voltem pra casa!'

O prazo final de toda brincadeira com meus amigos era o grito da Dona Ruth na janela: “Sai da rua, guri, vem pra casa!”. Sinto saudades da imagem dela com o corpo suspenso na janela do andar de cima do sobrado da rua Saldanha Marinho, em Porto Alegre, tentando nos alcançar com os olhos e a voz. Eu e meu irmão acelerávamos o pedal da bicicleta, recolhíamos o skate ou encerrávamos o bate-bola, sem direito a acréscimos, assim que o grito chegava aos nossos ouvidos. Era uma ordem sem direito a negociação. Sinto saudades não só dela, mas do fato de lá fora não haver mais crianças brincando. Com a calçada sem espaço e a rua sem segurança, os pais se sentem mais tranquilos tendo os filhos confinados nos apartamentos e condomínios, e em vê-los dentro de casa mesmo que diante do computador por longas horas. Curiosamente, em vez de serem levados à apatia, na frente dessas máquinas, expandiram suas relações, interagiram com comunidades diversas, trocaram informação e formaram novos pensamentos. De lá, enviaram alertas, traduzidos em petições digitais, não foram ouvidos e decidiram falar em público e em coro. Sim, são nossos filhos que estavam trancados em casa e, agora, voltaram às ruas, não mais para brincar. Foram para gritar, em um cenário que expôs a nossa dificuldade em traduzir o movimento em rede, este emaranhado produzido na internet, mas que só existe nas pessoas. Nos apressamos em culpar a oposição, que pode ser qualquer um que esteja do outro lado, demonstrando a falta de habilidade para conversar com essa turma, coisa que percebo há anos, em especial quando a autoridade pública é desafiada.

Lembro da reação de um prefeito diante de crianças convidadas a entrevistá-lo em programa de rádio. Estavam todas ansiosas, pois tendo de 10 a 16 anos fariam o que seus pais talvez jamais conseguissem na vida: questionar o prefeito, reclamar das calçadas, falar da escola e oferecer ideias, transformando-se em protagonistas na cidade em que moram. Ante a excitação dos pequenos entrevistadores, o político cochichou à assessora de imprensa: “Essa turma está encomendada”. Para ele, aquele pessoal só podia ter sido preparado, sei lá bem por quem, para fazer perguntas que lhe criassem constrangimento. Eram muito pequenos para terem interesses próprios. Fiquei imaginando que risco correria a autoridade diante de jovens que tinham a expor apenas suas dúvidas, embalados por sua inocência e angústia. E, pensando bem, qual seria o mal se eles tivessem mesmo vindos de ambientes politizados, de famílias que conversam na mesa do jantar sobre problemas do nosso cotidiano ou estivessem em escolas nas quais a política fosse além do velho OSPB que o regime militar me obrigou a estudar. Seria uma dádiva, penso.

Em outra ocasião, políticos também acusaram motivação política ao verem a juventude ocupando São Paulo, como se exercitá-la fosse direito privado dos partidos. Como a maioria de nós, surpreenderam-se com o liquidificador de críticas e ideias que se transformou essa rede. Procuraram a cúpula com quem estão acostumados a negociar e trocar favores e depararam com a imensa base construída pelas pessoas. Se pudessem, dependurados na janela do alto de seus palácios, gritariam: “Saiam da rua, meninos, venham pra casa!”. Não podem mais. Deixaram de ser o pai de todos e lá fora não há mais crianças, há cidadãos.

Milton Jung

Coluna Palavra Final, publicada na Revista Época São Paulo, edição de julho/2013 (texto com adaptações)